Novos estudos indicam que não existem limites seguros para o consumo de bebida alcoólica. É preciso refletir a respeito
De quantas doses consiste o uso moderado de bebidas alcoólicas? Essa é uma pergunta que frequentemente é feita para profissionais de saúde e especialistas na área de políticas públicas do álcool. O termo “beber moderado”, embora longe de ter uma definição clara, tem sido utilizado com leviandade. Entidades como o US Dietary Guidelines, o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), o European Code against Cancer revisam a cada tantos anos suas diretrizes para guiar os responsáveis por políticas públicas e a população sobre o assunto. Os níveis de uso de álcool sugeridas por essas entidades às vezes variam, mas nitidamente suas atualizações têm apontadomenores quantidades (e frequências) como consumo de baixo risco na saúde. Isso tem acontecido porque grandes pesquisas epidemiológicas (que investigam a distribuição de fatores de risco relacionados à saúde) têm trazido evidências cada vez mais claras sobre os prejuízos causados pelo consumo das bebidas alcoólicas.
Em 2022, o Canadá divulgou diretrizes de níveis de consumo de álcool de baixo risco para a saúde. O documento, liderado pelo Canadian Center on Substance Use and Addiction (CCSA), foi fruto de dois anos de pesquisa e contou com a participação de um painel de mais de 20 cientistas de várias organizações canadenses. Os pesquisadores se debruçaram, inicialmente, sobre quase 6.000 estudos, atualizando dados da diretriz anterior, produzida 11 anos antes. As conclusões principais: beber até 2 doses de álcool por semana (o equivalente a cerca de duas latas de 350 ml de cerveja, duas taças de 120 ml de vinho ou duas doses de 40 ml de destilado) é considerado risco baixo (mas não risco zero). Entre 3 a 6 doses de álcool por semana já seria considerado um risco moderado – e 1 dose de álcool por dia ou mais é considerado risco alto. Independentemente de onde a pessoa está nesse contínuo de risco, o quanto menos ela beber, melhor para a saúde dela. Essas diretrizes foram criadas para informar o público, e respeitando o princípio da autonomia, auxiliar as pessoas tomarem decisões baseadas nas evidências mais atualizadas.
De onde vêm essas evidências? Há muito a literatura científica traz dados contundentes sobre o monumental impacto do consumo de álcool na vida das pessoas e populações. O consumo de álcool está relacionado a um grande número de problemas de saúde, incluindo doenças transmissíveis, como tuberculose e HIV/AIDS, condições como cirrose hepática, vários doenças cardiovasculares (hipertensão, acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca) e diagnósticos de saúde mental. A ligação da depressão com consumo de álcool, por exemplo, é bastante fundamentada. O álcool aumenta o risco de acidentes de trânsito, homicídios, suicídios e violência de maneira geral. O uso de álcool durante a gravidez pode causar aborto espontâneo, nascimento prematuro, além de deficiências físicas, comportamentais e intelectuais para o bebê. As estimativas são de que o consumo de álcool contribuiu para a morte de 3 milhões de pessoas em 2016 no mundo todo.
A relação do álcool com câncer é um capítulo à parte. Muita gente ainda não sabe, mas há décadas o álcool é categorizado como um produto carcinogênico classificado no grupo 1, de risco comprovado (junto com tabaco, asbesto e radiação), pela Agência Internacional para Pesquisa do Câncer (International Agency for Research on Cancer – IARC). O álcool causa ao menos sete tipos de câncer. É importante apontar que é o etanol contido no álcool que causa câncer, o que significa que qualquer bebida que contenha álcool, independementemente do preço e qualidade, traz risco de desenvolver a doença. No caso de câncer de mama, por exemplo, mesmo quantidades pequenas de bebidas alcoólicas aumentam a chance de adoecimento. Um estudo de 2020 do IARC publicado no Lancet Oncology apontou que mais de 740 mil casos de câncer no mundo todo foram atribuídos ao álcool. Embora o consumo mais pesado e frequente de álcool estivesse presente emgrande parte desses casos, o uso de até duas doses por dia também teve impacto significativo. Em suma, a ideia de que o consumo de álcool possa ser parte de uma dieta saudável caiu por terra, embora essa narrativa ainda continue a ser propagada.
Deixando claro que não há consumo saudável de álcool, é importante comentar o chamado “binge drinking” ou consumo pesado episódico (heavy episodic drinking). Esse padrão de consumo, bastante comum entre os jovens (e nada raro também entre os não tão jovens) diz respeito a episódios de consumos intensos (definidos como 4 ou mais doses de álcool para mulheres e 5 ou mais doses para homens) em um curto espaço de tempo. No Brasil, a última pesquisa do IBGE aponta que 20% dos consumidores de álcool relata episódio de binge drinking no último mês. O binge drinking tem consequências agudas e crônicas – vários episódios temporários podem se tornar duradouros. Quando ocorre nas baladas, além do desconforto de causar vômito, ressaca, blackouts pode resultar em sexo sem proteção , transa com quem a gente não escolheria se não estivesse sob o efeito do álcool ou até violência sexual. O consumo de álcool em binge pode trazer não só prejuízos para a pessoa que bebe, como para os outros. A relação com violência (verbal, física) é clara, seja pelo efeito desinibidor de se beber em grandes quantidades, seja pela dificuldade de entender as sutilezas sociais (ler os outros) e sofrer redução dos processos cognitivos (ficamos, temporariamente, menos inteligentes). No caso dos adolescentes e jovens adultos, estudos de ressonância magnética têm mostrado o impacto de episódios repetivos de binge drinking com mudanças no funcionamento a curto e longo prazo do cérebro.
Quando pensamos no impacto do álcool nas populações, há um outro ponto muito importante, principalmente para países em desenvolvimento, como o Brasil. O álcool é um fator central de aumento das desigualdades. A literatura científica mostra, consistentemente, que os danos causados pelo álcool, mesmo quando consumido nos mesmos níveis, são maiores nas populações economicamente menos privilegiadas. Isso acontece tanto quando se compara países desenvolvidos com aqueles mais pobres, como quando se olha, dentro dos países, populações mais desfavorecidas comparadas com as mais ricas. Essas desigualdades produzidas pelo consumo de álcool estão associadas a vários fatores que afetam a saúde, incluindo uma maior exposição a estressantes estruturais (piores empregos, salários, moradia, por exemplo), maior ocorrência de obesidade, de uso de tabaco, de problemas de saúde mental, além de menor acesso a serviços sociais e de saúde e possibilidade de se exercitar. Ao mesmo tempo, países em desenvolvimento com grandes populações, como o Brasil, a África do Sul, o México, a China são considerados mercados-chave para os gigantescos produtores transnacionais de bebidas alcoólicas. Milhões são investidos em marketing e soluções digitais para facilitação das vendas com o objetivo de aumentar a base de consumidores nesses países. É um modelo de negócios baseado em uma questão aritmética: o número de indivíduos abstinentes é ainda bastante significativo e as regulamentações são quase inexistentes e frágeis.
Como reduzir os problemas relacionados ao álcool? As soluções, que passam principalmente por regulamentações efetivas (não auto-regulamentação, que a ciência já demonstrou que não fuciona) são nítidas e demandam apoio político. Não há falta de evidências científicas. Décadas de pesquisas e de soluções práticas estão resumidas na terceira edição do livro “O álcool não é um produto como outro qualquer”, publicado em 2022. Basicamente, políticas que aumentam o preço das bebidas alcoólicas (através de aumento de impostos, por exemplo), reduzam a disponibilidade do álcool (diminuindo os horários de venda, como fez, com eficácia, Diadema, assim como os locais de venda e a disponibilidade de compras pela internet, por exemplo) são as estratégias mais efetivas. Além disso, é fundamental a restrição do marketing das bebidas alcoólicas, incluindo aí as cervejas, de longe o mais frequente. Curiosamente e sem nenhum motivo plausível, a cerveja não é considerada bebida alcoólica para fins de regulamentação de marketing no Brasil. As pesquisas mostram que o marketing de álcool contribui para um início do consumo mais precoce e mais pesado entre os jovens, além de normalizar o uso pela ideia de que isso faz parte obrigatória da vida.
Talvez você não tenha gostado de ler essas informações. A narrativa prevalente sobre o álcool ainda posiciona o produto como indispensável em comemorações (incluindo festinhas infantis), para descarregarmos o estresse de cada dia, como sinônimo de liberdade. Há pouco tempo, o cigarro também se enquadrava nessa visão e as tentativas iniciais de reduzir seu consumo, lá nos anos 80 e 90 deram de encontro com resistência incentivada pela indústria do tabaco. A implementação das políticas públicas eficazes (estimuladas, entre outras coisas, pela exposição internacional dos documentos internos da indústria) fizeram com que o consumo aqui no Brasil caísse de quase 35% em 1989 a menos de 13% em 2019., um enorme ganho para a saúde do Brasileiro. Hoje a maioria de nós não acredita mais que medidas para restringir o consumo de tabaco se contraponham à liberdade das pessoas ou que o governo esteja sendo paternalista quando proíbe a publicidade do produto . Como diz Sally Casswell, especialista da Nova Zelândia sobre políticas do álcool, os prejuízos causados pelas bebidas alcoólicas são o ponto cego da saúde pública.
Está na hora de mudar isso.