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Traumas de guerra: quando o mundo vira uma ameaça constante

Diante de duas guerras em curso no mundo, colunista resgata a experiência de uma psicóloga que mudou a abordagem dos traumas diante da violência

A professora israelense Ofra Ayalon é uma psicóloga e pesquisadora especializada em traumas severos, incluindo aqueles relacionados à guerra e ao terrorismo. É alguém que constrói pontes entre pessoas e comunidades. Tinha 9 anos quando a Segunda Guerra Mundial terminou e sobreviveu por ter
nascido em Israel. Isso ela enfatiza em entrevistas, revelando que ter sido poupada de perseguições e campos de concentração enquanto milhões perderam a vida. Foi o motivo de se dedicar ao estudo de comoções, choques, intensos sofrimentos. Em 1973, trabalhava como psicóloga em uma clínica particular e como professora na Universidade de Haifa quando se deu a chamada Guerra de Yom Kippur: seu país foi atacado inesperadamente por uma coalização de Estados árabes. Apesar de Israel ter vencido militarmente o conflito, a conjuntura de alto risco – mais de 2.500 soldados israelenses foram mortos e
7.000 ficaram feridos – impactou profundamente a população local.


Essa vivência levou Ofra a se embrenhar na área da traumatologia. Ela se colocava a seguinte questão: “O que acontece com uma comunidade, com um indivíduo, com a família que passa por esse tipo de crise? O que acontece com as crianças, especialmente com elas, nas escolas e fora delas? Na verdade, a psicóloga já tinha tido contato com essas questões. Afinal, Ofra crescera em um país cuja construção fora afetada por sobreviventes do Holocausto, que exerceram forte influência na criação da memória coletiva.
Como pesquisadora, ela descreve essa vivência no livro The Holocaust and its perseverence: stress, coping and disorder. Entre outros achados, suas pesquisas e de inúmeros outros autores, como Dina
Wardi, que trabalharam com sobreviventes do Holocausto e seus descendentes, apontam que a atmosfera dessas famílias era frequentemente carregada de culpa. As expectativas que os pais tinham dos filhos eram imensas pelo fato de eles terem sobrevivido enquanto tantos pereceram. Muita culpa também provinha da percepção dos pais de não conseguirem proteger os filhos das adversidades na nova situação em que viviam.

A comunicação entre as gerações era difícil porque os pais simplesmente não sabiam como ouvir e aceitar as dores dos filhos. De certa forma, os mais resilientes entre os sobreviventes eram aqueles que conseguiam acreditar, apesar de tudo que haviam experienciado e perdido, que o mundo poderia ser
“normal” novamente. Indivíduos que, mesmo após vivenciar perdas inimagináveis, conseguiram evoluir e transformar-se, deixando um legado significativo e contribuindo para a comunidade.


Nesse contexto, Ofra começou em 1974 a desenvolver o COPE (Community Oriented Preventive Education) – Educação Preventiva Orientada para a Comunidade, um projeto inovador para lidar com a situação de crianças que vivem em ambientes perigosos, destacando o papel crucial da comunidade na
prestação de alívio para traumas em grande escala. O projeto treina equipes comunitárias, incluindo professores, profissionais da saúde e outros voluntários para utilizar métodos criativos adaptados ao
universo e à linguagem das crianças e atuar em três diferentes momentos (inoculação preventiva ao estresse, intervenção durante crises e tratamento de reabilitação). Ou seja, trata-se de um programa de treinamento contínuo focado na expressão comportamental e interação social que ajuda as crianças a lidarem com o estresse ligado à violência e à morte. O COPE representou um avanço significativo na resposta e gestão de desastres, e passou a ser implementado no sistema educacional israelense.


Posteriormente, esses avanços foram adotados por inúmeras sociedades afetadas por desastres naturais ou de origem humana ao redor do mundo. Esse foi o primeiro de muitos métodos coletivos de intervenção para prevenir e remediar traumas entre crianças e adultos. Ofra, hoje aos 87 anos, influenciou
toda uma geração de profissionais especializados em desastres de larga escala, como Mooli Lahad, uma das figuras mais destacadas atualmente no desenvolvimento de serviços de resposta a eventos catastróficos em nível global.


Os programas de enfrentamento implementados em todo sistema escolar israelense foram adaptados para países como Tailândia, Finlândia, Japão e Turquia. Foram utilizados na Argentina depois que a AMIA, associação da comunidade judaica, foi bombardeada por terroristas em 1994. Durante a guerra na antiga Iugoslávia, Ofra e sua equipe treinaram psicólogos locais para ajudar as comunidades vitimadas nos conflitos da região. Para criar seus métodos revolucionários e inspirar gerações de profissionais, Ofra se utilizou também de pesquisas com sobreviventes de alguns dos piores ataques terroristas em Israel. Um de seus trabalhos, por exemplo, é o acompanhamento de 59 indivíduos que fizeram parte de um grupo de 120 estudantes do ensino médio feitos reféns por terroristas palestinos armados em 1974.

No decorrer das 16 horas do ataque, 22 dos jovens foram mortos e muitos gravemente feridos. Os participantes que escaparam tinham aproximadamente 30 anos de idade quando foram entrevistados para a pesquisa. Uma significativa parte deles ainda apresentava sintomas de estresse pós-traumático, principalmente manter-se em constante estado de alerta. Isso provavelmente resultava da severidade do trauma (o encontro extremamente violento cara a cara com o terror) e pelo fato de terem vivido o episódio durante a adolescência.

Crises desse tipo afetam o princípio de continuidade das pessoas, a necessária sensação de segurança para sentir que o ontem prediz o amanhã. Entre outras técnicas, Ofra incorporou a seus modelos de lidar com trauma o chamado “Feeling Wheel” (roda do sentimento) e cartas terapêuticas que têm sido
utilizadas em escolas com crianças palestinas e israelenses para auxiliá-las a dar nome às emoções e associá-las aos eventos violentos pelos quais passaram. As crianças dos dois lados da fronteira percebem, entre outras coisas, que partilham o fardo de uma infância incerta. Ao mesmo tempo, aprendem novas
habilidades de enfrentamento de sua realidade ao invés de ficarem presas à demonização de um povo inteiro, o que é um perigo para o desenvolvimento infantil e mesmo para a capacidade de os adultos lidarem com o presente, já que passam a se fiar em pseudo-soluções abstratas, violentas e, por vezes,
irreversíveis.